terça-feira, 21 de junho de 2011

SISTEMAS COGNITIVOS E SISTEMAS DE CRENÇAS: Problemas de Definição e Comparação*

Gilberto Velho

I – A coexistência de diferentes sistemas cognitivos tem sido variável fundamental para caracterizar sociedades modernas, distinguindo-as daquelas em que a predominância nítida ou quase exclusividade de um sistema sublinharia sua maior homogeneidade.

Sabemos que todo sistema cognitivo é por definição complexo e, por isto mesmo, a dualidade sociedade complexa e não-complexa é, pelo menos, discutível. Uma sociedade pode estar ancorada a um sistema que consideramos único mas cuja riqueza e densidade não nos permitiria classificá-lo de simples. O caso da Índia estudado, entre outros, por Bouglé e Dumont, é um bom exemplo de um sistema social e ideológico altamente complexo que, embora não exclusivo, operou com vigorosa predominância durante séculos. No entanto, sabemos também que o hinduísmo apresentava variações, seitas, particularidades e dissidências. Até que ponto pode-se afirmar que essas diferenciações expressam um só sistema? A crença na reencarnação e nas noções de puro e impuro, a aceitação do sistema de castas poderiam ser consideradas, no caso, como pilares básicos de sustentação de uma só sociedade e cultura. Outro exemplo interessante é o da Europa Ocidental durante a Idade Média. O cristianismo constituiu uma ordem moral, uma escala de valores e um sistema de crenças bastante abrangente. Mas o trabalho de historiadores como Duby e Le Goff chama a atenção para a variedade e mesmo vigorosa diferenciação dentro do período. Há, por exemplo, conflitos dentro da Igreja e entre o clero e a aristocracia sobre a natureza do casamento e da família (ver Duby, G., 1981 especialmente Caps. I, II, III). Desde, pelo menos, o século X surgem divergências sérias entre o Papado e as nascentes monarquias com acusações, excomunhões, etc. antecipando conflitos que assumiriam proporções de rompimento séculos adiante. Há concepções e opiniões diferentes sobre moral, pecado e sobre direitos e prerrogativas dos diferentes segmentos sociais. No entanto, compartilha-se a crença em Deus e na alma, apesar das heresias e das múltiplas discussões sobre sua natureza e essência. Ou seja, existem temas e problemas comuns que são considerados importantes e cruciais. Até que ponto isto define um sistema cognitivo? O que é necessário para o estabelecimento de fronteiras nítidas que possam distinguir um sistema de outro? Parece ser precipitado igualar uma sociedade a um sistema cognitivo. Este pode atravessar ou abranger diversas sociedades e uma destas, por sua vez, pode estar ancorada a mais de um sistema.

Até agora, propositalmente, não defini o que entendo por sistema cognitivo. De certa forma, procuro me aproximar da noção com certa cautela pois está longe de ser um conceito claro e preciso. Geertz distingue a visão de mundo de ethos enquanto Bateson diferenciou eidos de ethos. Grosso modo a ênfase nos aspectos cognitivos recai em visão de mundo e eidos enquanto ethos estaria associado a estilo de vida, aspectos afetivos, estéticos, etc. Estou aproximando Geertz de Bateson sabendo que há grandes diferenças em suas abordagens mas em ambos, de alguma maneira, a dimensão cognitiva é dissociada de outras dimensões ou variáveis. Entendo que esta separação é efetivada com uma dose consciente de arbitrariedade mas obviamente não é gratuita. A dicotomia cognição x emoção é clássica no pensamento ocidental. Gostaria de frisar que nem sempre será operacional e eficiente para as nossas finalidades desde que tem um a priori que pode não se aplicar a diferentes universos culturais. Parece-me que a noção de sistema cognitivo é indissociável de sistema de crenças, e este, por sua vez, implica imediatamente em emoção, sentimento. Por exemplo, a crença em espíritos associa-se à emoção da presença do espírito e na possibilidade do transe ou da possessão. Talvez eu prefira utilizar sistema de crenças para expressar a indissolúvel vinculação entre conhecimento e emoção e/ou afetividade. Pode-se alegar que a vantagem de empregar um sistema cognitivo seja o privilegiamento da lógica que sustenta uma visão de mundo. Neste caso, por exemplo, as noções de tempo e espaço estariam mais adequadamente encompassadas pelo cognitivo. Mas tudo isto parece problemático pois subordina o que está sendo chamado de cognitivo a pressupostos de racionalidade possivelmente etnocêntricos. Será que Espaço e Tempo estariam no território do lógico por serem mensuráveis dentro de nossa cultura? Mas sabemos também que há diferentes maneiras de representar tempo e espaço em outras culturas e mesmo na nossa podem ser encontradas diferenças significativas (ver por exemplo, o trabalho de Lívia Neves de Holanda Barbosa, 1981).

Linguistas como Basil Bernstein procuram estabelecer as relações entre estrutura social, formas de linguagem e comportamento focalizando as diferenças de código dentro da sociedade moderna (Ver, por exemplo Bernstein, B.,1981). Essas implicariam, inclusive, em diferenciação ao nível do próprio processo cognitivo. A ênfase excessiva na verbalização foi criticada por autores como Hill e Vareme (1971) que chamam atenção para “...the participants para-verbal and non-verbal behaviour, their shared history and the physical and cultural worlds in wich they communicate” (op. cit. Pg.217). Com isso, relativizavam as noções de códigos restrito e elaborado mostrando, inclusive, que o silêncio também deve ser entendido como linguagem, enfatizando a importância de definição de contextos. Nos termos mencionados anteriormente parece-nos, portanto, problemática a distinção de um cognitivo específico separado de seu contexto cultural no sentido mais amplo, envolvendo aspectos afetivos, estéticos e emotivos. A própria construção de paradigmas como mostra, por exemplo, Victor Turner (1974) se dá em um processo em que as crenças estão indissoluvelmente associadas a emoções socialmente reconhecidas e valorizadas. A noção de eficácia simbólica, por sua vez, baseia-se na capacidade de envolver indivíduos e grupos de uma forma totalizante. Está aí toda a teoria de rituais trabalhando nessa direção.

II – Cabe ainda insistir como identificamos um sistema cognitivo ou de crenças? Podendo estar sendo óbvio para muitos, insisto que vejo sistema como uma noção, talvez um conceito mas, necessariamente, uma construção do observador. Ou seja um sistema, seja cognitivo, de crenças, político, econômico, etc. não é dado empiricamente. Não é um fenômeno natural. O universo social observado pode não estabelecer as mesmas distinções em domínios que o cientista social faz ao demarcar o território de suas especializações. Mas é correto falar em sistema na medida em que o pesquisador demonstre através da análise de seus dados que existem categorias, valores, temas, atividades, que se articulam, que fazem sentido uns em relação aos outros. A fronteira sempre implicará em algum grau de arbitrariedade mas, no caso, será construída a partir da avaliação de uma experiência social e dos significados a ele atribuídos por um grupo ou segmento particular. No entanto, será uma construção do pesquisador. O grau de proximidade ou de afastamento das representações vigentes no universo estudado não é, necessariamente parâmetro de correção científica. Essas serão, de certa forma, matéria prima para a análise e formulação do cientista. Enfatize-se, com todo vigor, que a descrição rica das representações e crenças em pauta é etapa indispensável para eventuais elaborações e construções teóricas mais ambiciosas. Mais ainda o modelo do investigador passa necessariamente pelas representações e modelos do grupo pesquisado.

Quando falamos, portanto, em comparação de sistemas é preciso verificar com cuidado os nossos objetivos. Podemos comparar descrições e podemos comparar modelos construídos necessariamente a partir de descrições. Para que isto se efetive com maior eficácia é necessário esclarecer e precisar um pouco melhor os conceitos e noções utilizadas, sob pena de ficarmos confundidos por uma Babel terminológica.

_______________________________________________________________

* Trabalho apresentado na Mesa Redonda “Sistemas Cognitivos em uma Perspectiva Comparativa” XIII Reunião Brasileira de Antropologia, USP, abril de 1982. Publicado em Comunicação nº8, PPGAS/Museu Nacional-UFRJ, 1984.

Bibliografia:

BARBOSA, Lívia Neves de Holanda. 1981.Estações do Ano, Estudo Preliminar das Representações, Museu Nacional, Mimeo.

BATESON, Gregory. 1958. Naven: A survey of the problems suggested by a composite picture of a New Guinea Tribe drawn from three points of view. Standford, Standford University Press,2ª ed.

BERNSTEIN, Basil. 1971. “Theoretical studies towards a sociology of language”. In Class, codes and control. Londres, Routledge & Kegan Paul, v. 1.

BOUGLÉ, Celestin. 1969. Essais sur le régime des castes. Paris, P.U.F.

DUBY, George. 1981. Le Chevalier, la Femme et le Pretre. Hachette.

DUMONT, Louis. 1970. Home Hierarchicus : an essay on the caste system.

HILL, Clifford A. & VARENNE, Hervé. Family, language and Education – The sociolinguistic model of restricted and elaborated codes. Inn: Social Science Information (SAGE) 20, 1 (1981). London.

LE GOFF. Jacques.1973. Os intelectuais na Idade Média. Lisboa, Editorial Estúdios Cor.

TURNER, Victor. 1974. Dramas, Fields and Metaphors. Ithaca, Cornell University Press.