segunda-feira, 19 de outubro de 2009

O BAILE E A CIDADE

Gilberto Velho*
Um dos principais desafios da vida na grande cidade contemporânea é o convívio das diferenças. Vivemos em metrópoles complexas, diferenciadas, com múltiplos estilos de vida, gostos e costumes. Os exemplos são infindáveis e passam por trabalho, religião, origem regional, preferências políticas, esportivas, lazer em geral, etc. A questão do funk volta à tona com a retomada de antigas acusações que o associam à criminalidade e à violência. Por outro lado, hoje existe um movimento cultural que defende e valoriza o funk não só como música, mas como estilo de vida, atitude e expressão artística. Certamente, uma política exclusivamente repressiva e policial está condenada ao insucesso e só acirrará tensões e conflitos sociais. Parece inquestionável que existem situações em que criminosos estão presentes nas festas funk, eventualmente patrocinando-as. Caso existam situações de violência e crimes, cabe à polícia investigar e, caso comprovado, tomar providências. Mas a generalização apressada e simplista significa desqualificar, estigmatizando todo um conjunto de manifestações associado ao lazer, à festa, e à sociabilidade de boa parte da população do Rio de Janeiro.No entanto, também é indiscutível que há um problema de convivência entre o horário e o som poderoso desses bailes em relação as suas vizinhanças, seja dentro ou fora das comunidades. Diariamente, lemos nos jornais cartas de leitores com reclamações quanto à impossibilidade de repouso e sono de milhares de pessoas prejudicadas pelo total desrespeito às normas básicas de convivência. Nos fins de semana isso fica mais evidente. Na sexta-feira, por exemplo, milhares de moradores de Copacabana e Ipanema são obrigados a ouvir em alto volume o som que vem dos morros.
Normalmente, começando por volta das dez horas da noite, isso se prolonga até seis horas da manhã. Parece-me um caso exemplar para buscar formas de diálogo e de aperfeiçoar nossos padrões de cidadania com pretensões à civilidade. É claro que a solução não é uma operação policial com armas pesadas mas passa, necessariamente, pela ação do poder público. Este deveria desempenhar o papel de mediador entre os freqüentadores e patrocinadores dos referidos bailes e os moradores de suas vizinhanças para se chegar a algum tipo de acordo e negociação. Diga-se, de passagem, que o desrespeito à lei do silêncio não é exclusivo dos bailes funk, mas acontece, por exemplo, nos famosos plays de prédios de classe média, embora sem a mesma intensidade e freqüência. Agora mesmo, no período de festas juninas, aceitou-se como normal os estouros de bombas e foguetes por parte de petizes estimulados por seus devotados pais e avós. Existe, assim, um problema geral de falta de civilidade e capacidade de convivência e respeito mútuo dentro de nossa cidade.
Os bailes funk, sem dúvida, como estão transcorrendo hoje, constituem um problema de convivência com vizinhos que simplesmente querem dormir e se recuperar de suas atividades rotineiras. Mas é fundamental que para lidar com essa questão não se retorne a um padrão meramente repressivo e policialesco. Se há crime e violência comprovados, providências têm de ser tomadas pela autoridade policial. O grande avanço seria estabelecer canais de comunicação e de diálogo que permitissem que as diferenças fossem respeitadas sem que fossem agressões de um grupo contra outro.
* Antropólogo
PUBLICADO EM "O GLOBO", 20/07/2009, p. 7.

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