terça-feira, 6 de outubro de 2009

A RESPONSABILIDADE DO PRESIDENTE

Gilberto Velho*

Estamos acompanhando, nos últimos dias, o noticiário sobre a viagem do Presidente da República e sua comitiva à África. Não há dúvida de que existe hoje na nossa política externa um projeto significativo de aproximação construtiva, com finalidades econômicas e políticas, de importantes países do que se chamava, até pouco tempo atrás, de Terceiro Mundo. Particularmente, a atuação junto aos países mais pobres, como os africanos de língua portuguesa e o Haiti, coloca o Brasil num patamar de grandeza ética e humanitária associada à implementação de interesses político-econômicos legítimos para um país de nossa dimensão e expressão.
No entanto, é preciso reconhecer que causam uma certa estranheza os esforços e mobilização material e simbólica das viagens presidenciais para o exterior nessas missões humanitárias, diante da gravidade da situação interna brasileira, que assume feições escabrosas. Indiscutivelmente, medidas e iniciativas importantes têm sido tomadas quanto à política social. Algumas propostas de promoção de maior igualdade e inclusão têm aspectos polêmicos. Mas, indiscutivelmente, o governo federal tem aparecido como ator relevante e sujeito nesse processo.
A área em que mais se sente a fraqueza de atuação deste governo é a de Segurança Pública. Sabemos que essa problemática é expressão de uma série complexa de variáveis ligadas à desigualdade social, ao mercado de trabalho instável, à urbanização precária e a problemas educacionais. No entanto, a leitura dos jornais diários constitui uma experiência traumática e uma verdadeira agressão às mentes e corações de todos os que ainda não perderam esperanças de cidadania. A violência se manifesta em todos os níveis da vida social e de forma descontrolada. Assaltos, seqüestros, assassinatos, balas perdidas, corrupção e desmoralização das forças policiais etc., tudo isso se soma para compor um quadro de grande insegurança e tensão social. Há, evidentemente, uma perda de controle por parte do poder público. O avô que é morto por uma bala perdida enquanto brinca com seus netos numa praça, os jovens pobres executados por policiais, a senhora assaltada e atropelada em plena avenida Vieira Souto, o rapaz assassinado em defesa de uma octagenária, o sistemático ataque a quartéis das Forças Armadas, as sangrentas rebeliões de presos produzem um panorama que, embora aterrador, parece não sensibilizar o poder público para uma ação efetiva. No caso do Rio de Janeiro, são óbvias as deficiências, falhas e incompetência das autoridades estaduais. Fora algumas ações isoladas bem sucedidas, assistimos a uma rotina assustadora de descontrole da Segurança Pública. As tentativas de entendimento entre o poder local e o governo federal, até agora, surtiram pouquíssimo resultado, e não há indícios de uma melhora a curto ou a médio prazo. A sociedade civil, cada vez mais vitimizada, não tem conseguido sensibilizar o poder público para que a socorra nessa situação crítica. Embora acreditemos nos princípios federativos e na divisão de poderes, não há como eximir o governo federal de sua responsabilidade maior de defender e garantir os seus cidadãos no território nacional, por todos os meios legais que se fizerem necessários. A dramaticidade do quadro em que vivemos exigiria uma outra postura da que até agora tem predominado. O Presidente da República pouco fala ou se manifesta sobre a questão da Segurança Pública. Seria lamentável acreditar que em Brasília não se perceba o grau de deterioração que afeta toda a sociedade, particularmente as grandes metrópoles, devido a essa crescente e incontrolável violência. Trata-se, claramente, de um assunto que exige uma mobilização nacional, reunindo partidos políticos, autoridades estaduais, municipais, associações civis, entre outros. Mas não há como eximir o governo federal do seu papel central nesse processo. Seria importante manifestar, de modo insofismável, que as preocupações e iniciativas em relação a países pobres do Terceiro Mundo, com todas as suas mazelas e sofrimentos, é consistente, por sua vez, com as iniciativas e políticas públicas para o Brasil propriamente dito. Estamos solidários com o Haiti, com São Tomé e Príncipe, com Moçambique, além de outros países que poderiam ser citados. Isto é positivo, generoso e tem alto significado político e simbólico. Urge que a população brasileira sinta-se, por sua vez, mais amparada e protegida pelo Estado no seu cotidiano tão sofrido.

* Antropólogo
PUBLICADO EM O GLOBO, 30/07/2004.

Nenhum comentário:

Postar um comentário