terça-feira, 6 de outubro de 2009

VIOLÊNCIA E PODER PÚBLICO

Gilberto Velho*

O trágico sacrifício do jornalista Tim Lopes denuncia, de modo vigoroso, a raiz da violência na sociedade brasileira contemporânea. Existem muitas explicações para as diferentes formas de criminalidade que campeiam em nosso país. É impossível descartar a desigualdade sócio-econômica, a concentração de riquezas e a cupidez de grupos e indivíduos insensíveis à questão social. O crescimento urbano desordenado e caótico, o florescimento de ideologias individualistas desprovidas de conteúdos éticos e de solidariedade social, a crise de valores, o consumismo, o desprestígio de instituições públicas e a fragilidade da sociedade civil são algumas outras variáveis explicativas que reforçam o quadro destrutivo e ameaçador.
O fato é que o tráfico de drogas e a criminalidade a ele associada atingiram uma tal gravidade que põem, efetivamente, em cheque o Estado de Direito. O poder público admite, às vezes candidamente, que perdeu o controle sobre áreas significativas da cidade, particularmente no Rio de Janeiro. Assistimos, cotidianamente, a operações de guerra transmitidas pela televisão, com tropas subindo e descendo morros, vasculhando e trocando tiros com os bandidos. Os embates entre gangues de traficantes se multiplicam nos mais diversos pontos e áreas da cidade, aumentando a insegurança e o medo da população. Como resultado desses combates, freqüentemente morrem ou são feridas pessoas inocentes. Sabemos do cruel exercício de poder exercido pelos traficantes e seus comparsas contra qualquer contestação que possa surgir na favelas e nas periferias. Há um misto de temor e reverência nessas populações, acuadas por esses bandidos, como demonstram diversas pesquisas e reportagens como as de Tim Lopes. As drogas, sem dúvida, constituem a matéria-prima que estimula e alimenta a formação e existência das redes criminosas. Mas elas não explicam tudo. Colocar todos as razões da violência nas drogas, propriamente ditas, simplifica em excesso a profundidade e gravidade da questão. O tráfico de armas agrava a violência de forma extrema com introdução de artefatos e equipamentos potentes e sofisticados até há alguns anos atrás praticamente desconhecidos. Esses alteraram para muito pior o nível da ameaça e multiplicaram o poder dos criminosos, dando-lhes condições bélicas inéditas.
É importante não alimentar ilusões. O banditismo, sob diferentes formas, abocanhou e criou um tipo de poder de que não abrirá mão sem forte luta e resistência. Outras fontes de poder e recursos podem alimentar essas redes criminosas, mais ou menos organizadas. Outros ítens podem se somar ou substituir as drogas de hoje. Novas formas de criminalidade serão desenvolvidas e aperfeiçoadas. O fato é que, hoje em dia, os bandidos adquiriram um prestígio social significativo, mesclado a medo e ódio, no meio em que vivem. Atingem uma notoriedade que se expressa no seu aparecimento direto ou por citação na mídia do país. Tornaram-se, de algum modo, pessoas importantes, por mais que isso possa soar distorcido e falso para a maioria da sociedade. A vida pode ser breve mas é intensa e repleta de um tipo de gratificação desconhecido ou condenado por gerações anteriores, associado às drogas e ao gozo do poder. Já mais do que tarda a mobilização do poder público, em todos os níveis, com a coordenação do governo federal para não só incrementar uma política social efetiva, estável e permanente para lidar com a desigualdade e a pobreza, mas, sem hesitações maiores, agir politicamente, inclusive com o uso da força, para reconquistar a soberania ameaçada. Embora nas favelas e nas periferias o quadro seja mais dramático e explícito, é evidente que o cotidiano dos brasileiros mudou para pior nas últimas décadas, fazendo com que a violência seja uma ameaça permanente e onipresente para todos os indivíduos e para a democracia como instituição político-social. As conquistas da sociedade brasileira estão hoje postas em cheque pelo avassalador crescimento da violência e da criminalidade. Este é o nosso maior desafio.

* Antropólogo

PUBLICADO EM O GLOBO, 14/06/2002.

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