terça-feira, 6 de outubro de 2009

TERRORISMO E CULTURA

Gilberto Velho*

A tragédia ocorrida nos Estados Unidos, no dia 11 de setembro, revela-nos com crueza, uma dimensão fundamental da sociedade moderno-contemporânea. Serviu para denunciar não só a violência, mas, através dela, aspectos e características que ficam semi-encobertos ou naturalizados na rotina do cotidiano.

No início do século XX, o pensador alemão G. Simmel já apontava para o desequilíbrio crescente entre cultura objetiva e cultura subjetiva. O enorme desenvolvimento e progresso dos recursos materiais e tecnológicos não era acompanhado, segundo ele, por um aperfeiçoamento e amadurecimento das subjetividades individuais. Isso gerava uma distorção entre os elementos objetivos externos, a disposição da sociedade, e a possibilidade dos indivíduos se beneficiarem internamente, em termos de seu crescimento pessoal. Assim, empobreciam-se as possibilidades de interação e diálogo, afetando a qualidade de vida pessoal e social. Não se tratava de negar ou rejeitar a importância da tecnologia e do desenvolvimento material, mas de sublinhar o descompasso que relegava a dimensão subjetiva a um plano secundário. Esse processo só tendeu a se agravar nos últimos cem anos. Vários outros pensadores trataram desta temática com ênfases e perspectivas diferenciadas.

Os atentados de Nova York e Washington confirmam que a capacidade de comunicação e deslocamento no mundo globalizado não significa maior entendimento e enriquecimento recíproco entre os diferentes atores, sejam, indivíduos, grupos ou Estados Nacionais. Os desequilíbrios sociais, o materialismo, a massificação, o uso descontrolado do poder econômico e militar configuram um quadro de confrontação em que o valor da vida humana torna-se irrisório. Esse fenômeno denuncia-se, de modo literalmente explosivo, nos Estados Unidos no dia 11 de setembro, mas está presente, em maior ou menor grau, no cotidiano de todas as sociedade contemporâneas. O paradoxo da modernidade é que o progresso material não só não eleva, necessariamente, os espíritos mas associa-se, com frequência, a formas extremas de exploração e desrespeito da pessoa humana. A situação de categorias sociais oprimidas, de minorias discriminadas e de regiões miseráveis, expressa e produz, dramaticamente, o mal estar que contamina todas as relações humanas. O uso da violência, com tortura e assassinatos, culminando em massacres de milhares de vítimas, certamente contraria todas as expectativas de civilidade e solidariedade. Os atentados de 11 de setembro, especificamente, violentaram padrões mínimos de sociabilidade e de dignidade humanos. Todos os tipos de “realismo político” ou de “messianismo salvacionista” que procurem justificar ou legitimar tais ações afastam-se de um projeto democrático mais amplo de controle e eventual superação de conflitos através da reflexão e do diálogo.

O terrorismo, portanto, concentra e sintetiza, de forma agressiva, características e tendências identificáveis em vários níveis e dimensões da vida sócio-cultural. Só a tomada de consciência da gravidade desta situação é que pode criar uma base efetiva para ações e políticas de longo prazo que possam sensibilizar não só os atores hoje diretamente em confronto, mas toda a humanidade ameaçada pela violência da intolerância. Urge fortalecer ou criar mecanismos e instâncias internacionais que ultrapassem e transcendam os interesses e motivações que hoje norteiam a política e a economia mundiais, incapazes de promover a tão falada integração dos povos, respeitando a pluralidade e diversidade culturais e individuais.


* Antropólogo
PUBLICADO EM O GLOBO, 08/10/2001.

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